
Não consegui identificar de onde poderá ter vindo o nome da maior herdade murada de Portugal (há quem afirme mesmo que da Península Ibérica), mas a herdade, que apelidaram de Bela, não tem tido propriamente uma história igual.
Contam os registos que a Herdade da Torre Bela pertenceu ao Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Luís de Sousa, confessor do rei D. Pedro II, antes de passar para as mãos do Duque de Lafões, D. Pedro Henrique de Bragança, neto do referido rei. Era uma propriedade constituída por montados com sub-coberto de matos para alimentação de gado bravo e povoamentos de pinhal manso. Lá se explorava também o olival, a vinha e o trigo. Dotada de um luxuoso solar onde habitavam os proprietários, possuía igualmente um lagar de azeite, uma caldeira de aguardente, bem como cavalariças e um touril.

A 23 de Abril de 1975, imbuídos do espírito revolucionário pós 25 de Abril de 1974 que inspirou o período do PREC – Processo Revolucionário em Curso, a herdade é ocupada pelos camponeses das aldeias vizinhas, comandados pelos membros da LUAR – Liga de Unidade e Ação Revolucionária, Camilo Mortágua e Hermínio da Palma Inácio. A ideia era a criação de um modelo de cooperativa ainda não experimentado até aí, que divergia dos implantados pelo PCP, mas que se revelou ser tão ineficaz como os restantes, acabando com o abandono da propriedade num rasto de destruição.
As venturas e desventuras deste tempo de ocupação encontram-se ainda bem presentes no espírito de quem as acompanhou, quer direta, quer indiretamente e têm passado para as gerações mais novas os relatos dos animais que se abateram, as culturas que se deixaram morrer, o mobiliário, roupas, louças e outros objetos que passaram de mãos.
Se, por um lado, se pode compreender que a subjugação de uma população a uma família feudal que transpirou mordomias, durante anos, perante uma população esfaimada que vivia das migalhas que caíam, tivesse levado ao grito de revolta que a ocupação significou, por outro, a estrondosa falência do modelo, deixando uma Torre Bela completamente esventrada, já não é de todo aceitável. Não sei quando terá passado a Torre Bela para as mãos dos seus antigos donos, nem quanto teremos nós pago de indemnização.
A história da Torre Bela cruza-se com a minha própria história, na década de 90, quando ingressei no Departamento de Investigação Florestal da Soporcel, que funcionava numa área de 4 hectares que aquela empresa adquiriu à família Bragança e onde construiu de raiz o seu Centro de Investigação Florestal, e arrendou a área restante. Durante o período em que esse centro lá desenvolveu a sua atividade, nos últimos anos já fundido à Portucel e com o nome de RAIZ – Instituto de Investigação da Floresta e do Papel, a Torre Bela viveu tempos áureos.
A qualidade do trabalho que lá era desenvolvido, os projetos de investigação pioneiros, alguns em colaboração com as mais variadas universidades estrangeiras, a alta qualificação dos técnicos, fizeram daquele um local de referência e um dos mais prestigiados do ramo no mundo inteiro. As visitas frequentes que semanalmente iam àquele local eram disso testemunho.
No final da década de 90 a Sociedade Agrícola da Quinta do Convento da Visitação inicia a aquisição da Torre Bela. O Centro de Investigação, localizado no centro da Herdade, perde o acesso ao exterior, que era feito pelas terras em redor, que tinha arrendadas, e onde o novo proprietário começa a colocar dificuldades. Para melhor compreensão, basta dizer que ambas as entradas se localizavam em terrenos do novo proprietário.
Várias discussões, reuniões e providências cautelares depois, em 2004 a parcela onde se situava o Centro de Investigação é vendida ao novo proprietário. O Centro é desmembrado, abandona a Torre Bela e é repartido por várias localizações. Na altura a herdade já estava amplamente povoada de veados e gamos, que eram uma delícia para a vista de quem a atravessava diariamente, e foi transformada num local de caça turística.
Recentemente a Herdade da Torre Bela voltou a vir a lume pelas piores razões. A matança de 540 animais expostos como troféus nas redes sociais tornaram-se virais, saltaram para a imprensa nacional e estrangeira e chocaram meio mundo. Multiplicou-se a indignação e o repúdio contra aquele ato vil, vindos dos mais variados quadrantes, inclusive do seio de quem é caçador.
A indignação veio também da parte de quem tanto defendia e pugnava pelo projeto que levou àquele ato vil. Levantou-se a voz dos responsáveis locais que ainda há bem pouco tempo tinham aprovado em sessão de câmara uma declaração de utilidade pública para a instalação de painéis solares numa área de 750 hectares na Torre Bela. Levantou-se a voz do Ministro do Ambiente que ansiava por aquele projeto que lhe permitia cumprir uma quota importante na implantação de energias alternativas.
Mas o projeto, que visa diminuir a libertação de CO2, obrigava a que se arrasasse a floresta lá existente (que é a principal responsável pelo consumo de CO2, libertando oxigénio!) e o estudo de impacto ambiental condicionava a implantação dos painéis ao “afastamento” dos animais de grande porte. Que teriam sido “afastados” do modo que foram, sem nenhumas manifestações de indignação por parte dos mesmos – acredito – se o ato fosse falado à boca pequena e não tivesse tido o impacto que teve depois de publicitado nas redes sociais.
Em nome do ambiente e das energias alternativas, chacinaram-se 540 animais, arrasaram-se vários hectares de floresta e a Torre Bela está prestes a dar lugar a uma nova ocupação, novamente em nome de um “bem comum”, embora com perspetivas diferentes. Não podemos adivinhar o futuro e saber como irá acabar a história desse novo “bem comum”. O começo, para já, não podia ser pior e o que se perspetiva em termos de ocupação do solo, em favor do denominado bem comum, à custa de um concelho ficar refém de dar e pouco receber, também não é muito auspicioso.
Relembro que ainda hoje estamos à espera das contrapartidas do Estado por ter deixado o concelho por tantos anos refém de um aeroporto que nunca chegou a vir, condicionando de forma desastrosa o seu desenvolvimento.
Li que o Ministro do Ambiente suspendeu o projeto dos painéis fotovoltaicos. Se acreditasse nos seus “rebates de consciência” que o terão levado a tal suspensão, diria que talvez a nova ocupação prevista para a Torre Bela não viesse a concretizar-se. Como não acredito, acho que mais uma vez o concelho de Azambuja vai comprometer o seu desenvolvimento em favor de um bem comum, cuja quota parte já estaria perto de ser garantida pelas árvores que foram cortadas. A não ser que quem o habita não deixe. Serão os seus habitantes disso capazes?