
Foi há precisamente 54 anos que Alenquer viveu um momento dramático causado por chuvas torrenciais. Na madrugada de 25 para 26 de Novembro de 1967 inundam a região de Lisboa e causam centenas de mortos, deixando um rasto de destruição. A chuva copiosa que caiu durante todo o dia 25 e saturou os solos era apenas o prenúncio do que ainda estava para vir.
Pelas 19 horas a chuva intensificou-se e até há uma da manhã do dia 26 choveu torrencialmente. 77,5 mm em Lisboa, 129,7 mm em Monte Estoril, 115,3 em Loures, no curto período de seis horas. Em uma hora apenas a chuva registada nalguns locais chegou aos 60 mm. A chuva que deveria cair ao longo de um mês de pluviosidade normal caiu no espaço de apenas algumas horas.

Naquele tempo os meios de previsão meteorológica não tinham a capacidade atual, não existia um sistema de proteção civil, nem os meios de alarme e alerta eram comparáveis aos atuais. A hora tardia a que a chuva se intensificou apanhou a população de Alenquer já no repouso noturno. Estavam criadas as condições para a ocorrência de uma catástrofe de grandes proporções, a maior provocada por causas climatéricas no século XX em Portugal.
Nos afluentes do Tejo registou-se uma subida da água na ordem dos 3 a 4 m, nas zonas mais afetadas. A memória histórica das cheias, conservada na parede de uma construção na Rua Triana, em Alenquer, indica que naquele local o nível da inundação atingiu os três metros e 7 centímetros, mas num ofício dirigido ao presidente da câmara pelo veterinário responsável pelo matadouro municipal este informa que naquele local a cheia ultrapassou os quatro metros. Aqui funciona atualmente a biblioteca municipal, porventura o local da vila onde a cheia terá atingido o nível mais elevado. Em muitas situações a inundação chegou ao primeiro andar das casas.
Centenas de mortes na região de Alenquer/Carregado. Ainda hoje não se sabe com rigor quantas pessoas morreram. A contagem oficial terminou nas 462 vítimas, mas outras fontes referem que o número de mortos poderá ter chegado a 700. Quando o regime percebeu a dimensão da tragédia procurou minimizar a sua extensão para ocultar a precariedade em que se viva nos bairros suburbanos que circundavam Lisboa e nas zonas rurais pobres. Os jornais, por sua vez, podem ter inflacionado o número de vítimas, fosse devido à pouca fiabilidade das fontes, fosse para antecipar os cortes que a censura iria impor, para que a desgraça parecesse menor.
No concelho de Alenquer foram registadas dezenas de mortos. No dia 28 de Novembro o Diário Popular contabilizava 62 mortos em Alenquer: 10 na vila, 29 em Cadafais, 15 no Casal do Góis (atualmente Casal de S. Silvestre), 7 em Refugidos, e 1 no Soupo. Na edição do dia 2 de Dezembro o jornal A Verdade contabiliza 66 mortos no concelho de Alenquer.
Numa relação de vítimas elaborada pela Câmara Municipal, presumivelmente em fevereiro de 1968, e enviada ao Governo Civil, são contabilizadas 46 vítimas mortais em todo o concelho: 10 em Alenquer, duas na freguesia de Santana da Carnota, uma na freguesia de Meca, e 33 na freguesia de Cadafais – 11 em Cadafais, 5 na Quinta das Amendoeiras, 2 na Quinta da Carnota, 4 em Refugidos, 10 no Casal do Góis, e uma em Guizanderia. Nalguns casos desapareceram famílias inteiras.
Casos houve em que os cadáveres foram arrastados pela cheia e encontrados a grande distância. Cadáveres de desaparecidos em Alenquer foram encontrados em Vila Nova da Rainha, e desaparecidos em Cadafais encontrados na Vala do Carregado. O Cadáver de uma bebé de 8 meses ainda não tinha sido encontrado à data do inventário elaborado pela Câmara Municipal. Esta relação, embora credível, pode no entanto não ser exata. Em Alenquer sempre se falou de 11 vítimas e fontes de Refugidos afirmam que ali morreram 5 pessoas e não 4.
Mas se a catástrofe em Alenquer teve esta dimensão, do outro lado do Rio Grande da Pipa, já em Vila Franca de Xira, foi ainda pior. A Aldeia de Quintas, frente a Cadafais, quase desapareceu. 90 pessoas morreram; famílias alargadas ficaram reduzidas a menos de metade. A tragédia vivida em Quintas foi amplamente documentada pela imprensa da época, que a considerou a “aldeia mártir” desta catástrofe, mas alguns jornalistas que a reportaram confessavam a dificuldade em encontrar palavras para descrever aquilo que encontraram. Mesmo na imprensa internacional é possível encontrar imagens de Quintas.
A revista LIFE publicou uma imagem de um cadáver a ser evacuado do largo desta aldeia, que se situa a 500 metros do curso do rio. Que o nível da cheia em Alenquer tenha atingido 3 a 4 metros impressiona, mas se tivermos em conta que Alenquer é um vale apertado, percebemos que em situações de pluviosidade excecionalmente elevada isso possa acontecer. Quando constatamos a existência de mortos a 500 metros do leito de um rio, num vale tão extenso como o do Rio Grande da Pipa, temos dificuldade em perceber que níveis diluvianos de pluviosidade podem ter provocado, com tanta rapidez, a elevação do nível da cheia, ao ponto de apanhar desprevenidas pessoas que moravam a uma tal distância do rio.
Na verdade, a bacia hidrográfica do Rio Grande da Pipa foi aquela em que se registou maior número de vítimas nas cheias de 1967: cerca de 140 mortos, se somarmos as vítimas de Quintas, Cadafais, Santana, e as do concelho de Arruda dos Vinhos, e não formos além das contagens oficiais. Devido a esta catástrofe, Alenquer e Vila Franca de Xira estão classificados entre os concelhos com maior número de mortos resultantes de acontecimentos hidrogeológicos no período 1900-2006.
Prejuízos extremos em Alenquer. Mas esta tragédia não provocou apenas vítimas mortais. Segundo informação encontrada no arquivo da biblioteca municipal, em Alenquer ficaram desalojadas pelo menos 54 famílias, estradas ficaram intransitáveis, pontes foram destruídas, o comércio e indústria sofreu enormes prejuízos. O inventário dos prejuízos à economia privada no concelho de Alenquer contabiliza perdas que totalizam 59.310 contos, o que, para a época, é uma quantia muito elevada.
Imagens da catástrofe mostram ruas com lama até 1 metro de altura, lojas esventradas e enlameadas, e automóveis arrastados pela cheia, alguns ainda no leito do rio. Nos celeiros localizados no bairro do Areal, mil toneladas de cereais terão sido destruídas. Diz a Revista Portuguesa de Geografia, FINISTERRA, que por essa altura preparava um trabalho sobre Alenquer: “O moinho e a fábrica de papel tiveram suas partes térreas invadidas pela água até cerca de 1,50 m. As indústrias de lanifícios e de refrigerantes não escaparam à fúria das águas. A mais atingida, todavia, foi a fábrica de papel: teve parte da maquinaria e um dos seus pavilhões levados pela correnteza, porquanto estava construído sobre a ribeira. Pesadas máquinas, algumas com várias toneladas, foram arrastadas pelo caudal, como foi o caso de duas calandras, encontradas distantes da fábrica, uma delas próximo do Camarnal”. (pág. 41)
Umas destas calandras arrastadas pela cheia, ao passar pela ponte do largo Rainha Santa Isabel, terá embatido num dos apoios e derrubou-o, o que provocou o colapso da ponte. A ponte que ali existe atualmente foi construída em 1971. Outras pontes foram igualmente destruídas ou severamente danificadas, como a da Barnabé, Cadafais, Refugidos (na altura em obras), e Montegil. Infiltrações na cobertura da igreja do convento de S. Francisco deixaram os tetos quase em ruínas. A lista de obras para reparar os estragos sofridos, é longa, dispendiosa, refere locais distribuídos geograficamente por todo o concelho, e o período de execução prolonga-se durante alguns anos. A estrada do Camarnal, segundo documentação datada de Abril de 1969, ainda se encontrava interdita ao trânsito nesta data, “com um corte de 14 metros”.




























