Ainda lhe vêm à memória pormenores daquele fatídico dia em que tudo mudou?
Estava para renunciar ao mandato em finais de Abril. Vendi a minha casa da Nazaré e comprei uma no Bom Sucesso, frente à Foz do Arelho. Comprei um barquito daqueles que nem necessitam de carta, comprei um cão, o Pastor Alemão de raça branca, e preparava-me para gozar a reforma. Lembro-me perfeitamente do que aconteceu: eu estava sozinho em casa, numa sexta-feira à tarde, e tive uma dor enorme no abdómen… Percebi logo o que estava a acontecer.
Foi intuição?
Foi uma dor tão forte que não poderia ser uma simples dor de barriga, nem nada que se parecesse. Telefonei para o 112, e eles disseram para eu me sentar. Eu abri a porta, sentei-me e fiquei à espera que chegasse o helicóptero. Fui logo operado.
O que é que você teve exactamente?
A artéria aorta rebentou, aqui entre o coração e a veia femural.
Teve a ver com a sua vida exigente, de alguma forma desregrada?
É capaz disso. Eu tive dois anos muito complicados, os dois últimos. Questões familiares, a doença da minha filha, a senilidade da minha mãe. E aqui na câmara, com a falta de dinheiro, as coisas também não foram nada fáceis. Fiz uma primeira operação, e depois, passado um mês, fiz uma segunda que não correu muito bem, esta ao coração. Pus um pacemaker, uma válvula, mas fiquei com uma insuficiência cardíaca muito grande, cerca de 70 por cento. Tenho o meu dia a dia limitadíssimo. Até o andar está limitado; começo a andar, mas ao fim de 50 metros não ando mais.
Basicamente não sai de casa.
Vou ao café, dou aí as minhas voltinhas e pouco mais.
Como mora aqui tão perto, tem tentação de ir até à câmara?
Por acaso fui, fui a uma sessão de câmara…
Eu sei que foi, e até ia perguntar-lhe sobre isso mais à frente. Mas já que falou do assunto: porque é que foi à câmara como se fosse um munícipe tentar resolver um problema que poderia ter resolvido no gabinete com o Luís de Sousa? Afinal, você ainda era o Presidente da Câmara naquela altura.
Porque eu considero que neste país ainda existem regras. As pessoas não podem estar quatro meses sem receber salário. Ou são despedidas e vão para o fundo de desemprego, ou continuam a receber salário caso não se verifique o despedimento.
Mas porque é que não falou à parte com o Luís de Sousa?
Já tinha falado. Eu quis envolver todos os vereadores nesse processo.
Mas quem é que falhou nesse processo para que tivesse deixado de receber o seu salário? Porque é como diz, e parece-me ter razão: se não foi despedido, se não abdicou, se estava ausente por doença, então teria direito pelo menos a uma baixa médica.
Eu tenho essa situação em tribunal. Penso que foi excesso de zelo dos serviços administrativos da câmara.
Não recebeu mais nada desde que ficou doente até ao final do mandato?
Pagaram o subsídio de férias e as despesas de representação. Eu estava de pijama em Santa Maria, não precisava das despesas de representação…
Mas está à espera, ou estava à espera desse dinheiro para sobreviver? Eu tenho a certeza de que não, mas gostaria que explicasse isso às pessoas.
É uma questão de princípio. Sou eu de quem se trata, mas poderia ser alguém que estivesse a precisar deste dinheiro.
Então no seu entendimento houve excesso de zelo. Houve alguém na câmara que teve medo de estar a fazer mal se desse ordem para que você continuasse a receber salário?
Se eu renunciasse ao mandato não teria direito a continuar a receber. Ora, eu estava em coma, estive semanas em coma, e nesse estado não poderia renunciar. Havia um relatório do hospital a dizer que dois dias depois do acidente eu estava em coma. Bastaria que os serviços pegassem nesse relatório… acho eu…
Qual foi a posição do Luís de Sousa nesse contexto?
Apoiou-me completamente, concerteza. Todos os vereadores me apoiaram, incluindo a oposição.
Estes momentos servem para vermos os verdadeiros amigos que temos?
Revelam-se mais. As pessoas valorizam mais as coisas que nos unem do que as que nos distanciam.
Costuma dizer-se que as pessoas dão mais valor à vida depois de passarem por processos complicados como o que viveu. Está a acontecer-lhe?
Não! Vejo as coisas de forma igual.
Tenho lido alguns dos seus textos publicados na sua página do Facebook. E estou surpreendido, pois sempre achei que um dia quando visse a câmara pelas costas não haveria de ter paciência para abordar questões da política local. Pergunto-lhe se teria a mesma paxorra para opinar sobre “herculanisses” e afins caso não tivesse tido o acidente vascular.
Não, de todo. Estava noutra. Estava noutra, mesmo. Assim tenho, e achei que deveria explicar às pessoas porque é que o Herculano Martins tinha aquela malapata comigo.
Mantém a ideia de que o Herculano teria feito o mesmo acordo com a câmara caso você lá continuasse como presidente?
Absolutamente.
O que acha que levou o Herculano a ganhar coragem para enfrentar a ira da CDU ao fazer o acordo que fez com o PS?
Eu não tenho muito a ideia de que tenha sido como dizem, o ordenado, o carrito, o telemóvel. Não sei nem me interessa como era a vida dele antes de ir para a câmara. O Herculano teve 25 anos na oposição a levar porrada. Os partidos, nomeadamente os de esquerda, mas os de direita também, radicalizaram-se muito. Veja o que aconteceu a pessoas como o Freitas do Amaral, o Basílio Horta ou o próprio Adriano Moreira, que eram tipos conotados há 30 anos com a extrema direita e que hoje estão sempre ao centro, ou mesmo à esquerda, como é o caso do Freitas do Amaral. As pessoas têm uma determinada estrutura de pensamento lógico, independente das rotações que os partidos fazem, e se calhar o Herculano está hoje melhor no PS do que estaria hoje na CDU.
Então nessa sua lógica onde cabem as pessoas que nunca mudam?
São pessoas dogmáticas. Os dogmas e um conjunto de circunstâncias que as rodeiam fazem com que não mudem.
Entendi que então, na sua opinião, o Herculano estava ali mesmo a pedir para ser convidado. Pôs-se a jeito.
Claro que sim.
Ele sempre afirmou que há quatro anos você já o tinha convidado para concorrer em Manique pelo PS.
Mas isso é mentira.
Um dia você disse que tinha 5 mil livros, e que já os leu todos. Agora que tem tempo, ainda descobriu algum que eventualmente não tenha lido?
Sabe uma coisa? Eu não consigo ler. Jornais e revistas ainda leio, mas um livro, que implica que eu guarde na cabeça informação, isso eu não consigo, porque esqueço-me do que li. Estou agora a recomeçar a ler e a pintar.
Tem aqui algum quadro na sua casa que tenha sido pintado por si?
Tenho ali aquele preto com a cara branca.
Os seus filhos têm-o mimado, agora que está doente?
Imenso. A minha filha Inês vem cá todos os dias à tarde. O Pedro vive em Lisboa, tem uma vida muito ocupada, mas sempre que pode vem cá. E a Susana também. E tenho um neto que me mima muito também, filho da Susana. Tem 15 anos e gosta muito de jogar crapot comigo.
É a parte boa destas alturas. A família aproxima-se ainda mais e fica mais unida.
Mas depois também tem o reverso da medalha. Tive que por a minha mãe num lar por não ter capacidade para cuidar dela. Está naquele lar novo nos Casais da Lagoa. O Nuno nunca viu?
Não, presidente.
Valia a pena ir lá ver.
Você já dá muita importância aos lares, às condições que estes oferecem?
Porque não?
A doença não o fez perder aquele sentido de humor tão característico, que era evidenciado até à exaustão nas reuniões de câmara.
Está igual, se é que eu tinha sentido de humor. Apesar de eu me dar muito bem com os meus filhos, não me faz confusão nenhuma admitir que em algumas circunstâncias eu serei um empecilho. E portanto a minha perspectiva de futuro é ir com a Rosália para um daqueles lares que têm uma parte privada.
Mas com uma casa destas pensa em ir para um lar? Você tem aqui condições para fazer um lar inigualável. Não será mais fácil contratar alguém para aqui ficar a cuidar de si?
Oiça, quando eu for muito velho, se é que vou chegar lá, e quando estiver a precisar de enfermeiro, daquilo e daqueloutro, e de convívio…
Não o estou a ver a passar os dias num lar, longe aqui do seu mundo, das suas obras de arte, das suas tapecerias e do seu imenso casarão, a gastar o tempo com conversas de circunstância…
(sorrisos) Nos lares não se têm apenas conversas de circunstância…
Foi imprudente colocar Ana Maria Ferreira em quarto lugar nas listas do PS que concorreram à câmara?
Eu acho que é melhor nem me pronunciar… É mesmo melhor nem dizer nada…
Então nem lhe pergunto o que acha de terem metido o Amaral em terceiro na lista. Bom, já perguntei.
É melhor não, é…
Porquê? Eles iriam ficar mesmo muito irritados com a sua resposta?
Foi o possível neste contexto. O que foi mau foi mesmo a quebra de votação que ocorreu quando comparado com 2009.
Sente-se responsável por essa quebra de votação?
Não, de todo.
Então foi naquele período de Maio a Setembro que se deitou tudo a perder?
Basicamente.
As pessoas não viram em Luís de Sousa uma pessoa capaz de manter a fasquia onde você a tinha deixado?
Pois, não sei… mas tive mesmo muita pena que a Ana Maria fosse embora.
Numa das entrevistas que concedeu ao Fundamental, chegou a dizer que estava a preparar o futuro, dando a entender que estaria a “fabricar” um possivel candidato. Sempre esperei que houvesse uma alternativa que não passasse por Luís de Sousa.
Também eu, também eu. Não quero dizer que não tenha apostado no Luís de Sousa. Mas tinha a expectativa de uma equipa renovada, que não aconteceu. Nestas alturas de transição, quando há uma pessoa que vai embora, é sempre difícil impor nomes novos. O Luís de Sousa era vice-presidente, o Silvino presidente da Comissão Política, um homem que domina a máquina, e o Amaral era o homem que presidia à freguesia maior e sempre com muito bons resultados alcançados nas eleições.
Parece ter lógica, mas a população encarregou-se de demonstrar que essa não era a sua vontade.
E não era.
Como perspectiva 2017?
Eu li o seu artigo do último Fundamental e acho que faz sentido no que diz respeito aos nomes que colocou como hipótese, embora faltem lá alguns, como a Inês Louro ou o próprio Silvino, ou eventualmente alguém que apareça ao longo destes quatro anos. Se você reparar na constituição da Comissão Política, é tudo gente relativamente nova, mas que depois tem dificuldade em chegar aos lugares de topo porque encontram sempre resistência dos mais velhos…
De pessoas como o Silvino, que não querem ver o seu lugar ameaçado?
É natural.
Mas então assim não há renovação possivel.
Há-de haver. É um fenómeno que diz respeito a todos os partidos.
Depois de 12 anos, deixou o município como queria? Pese todos os contras, como a dívida?
A dívida é uma treta. Tendo em conta a quantidade de obra que eu fiz, a dívida é uma treta. Eu fiz obra até ao ponto em que achei que a dívida era sustentável. Por isso é que nos últimos dois anos não fiz obra.
Este cenário de extrema dificuldade surpreendeu-o?
Eu estava à espera que fosse um periodo muito dificil, mas não tão dificil como tem sido. Estamos num periodo mesmo muito mau, que não tem a ver com ciclos tal como nós os conhecemos. O que acontece é o seguinte: nós somos europeus, e os europeus e os americanos do norte sempre viveram à conta das mais diversas coisas: dos impérios, das especiarias, dos pretos, de africa, da europa do século XX. Havia um conjunto de povos que viviam miseravelmente para nós vivermos bem. E viviam miseravelmente porque os chineses, os indianos e os africanos desconheciam que havia outras formas generalizadas de viver. Eles sabiam que de quando em vez chegavam lá uns europeus carregados de malas e de luxos, mas achavam que era algo de inalcançável. Com a expansão dos meios de comunicação, perceberam que havia alguns continentes onde toda a gente vivia muito bem, enquanto que eles viviam muito mal. Agora não estão mais para isso, e estão no seu direito.
Então temos mesmo que aceitar, resignarmo-nos à pobreza?
Temos que baixar de nível, para que os outros povos possam subir um bocadinho. A liberalização do comércio foi muito mal feita, e nesse particular a europa não foi nada prudente porque partiu do princípio que se iria optar sobretudo pela qualidade em detrimento do preço, e não foi. Foi pela diferença de custos. A longo prazo ficaremos todos a viver a um nível equiparado, mas até lá passaremos nós um mau bocado. As pessoas não têm alternativa. A Alemanha lá se vai aguentando, até ver, mas os restantes países estão todos na penúria.
O governo actual está a fazer aquilo que tem que fazer, ou tinha alternativas para fazer diferente?
Eu acho que exageraram. Levaram a austeridade a um campo extremo. Eu percebo que o equilibrio das contas seja necessário, mas há muita miséria. Dizem que agora a economia deu um ar da sua graça, mas não foi por qualquer medida do governo. Foi porque o Tribunal Constitucional mandou pagar mais um mês aos funcionários públicos.