A comunidade local ainda faz sentido?

A proximidade foi sempre a vantagem da comunidade local, mas a acessibilidade quotidiana alargou-se muito para além dela (Opinião de Frederico Rogeiro)

Uma população humana duradoura, organizada sobre um espaço de proximidade – assim é a comunidade local hoje como na pré-história, apesar de todas as suas transformações. Mas a sua sobrevivência ao fim da história não é um dado adquirido.

Durante centenas de milhões de anos, o homem viveu em comunidades nómadas, alimentando-se da caça e da recolecção de frutos e vegetais. As comunidades locais são uma evolução recente, desde que a agricultura se tornou preponderante, fixando os grupos humanos, há não mais de 10 milénios. Começaram por ser pequenos núcleos tribais (os clãs) até se tornarem, com a civilização, estruturas maiores e mais complexas. Na cidade-estado coincidiam o estado e a comunidade local, política, económica e demograficamente auto-suficiente, condições essenciais da sua durabilidade.

Com o aumento das relações comerciais e com a expansão dos estados pela colonização e pela agregação de comunidades locais, estas tornaram-se crescentemente inter-dependentes, reforçando a sua condição de pólos onde as necessidades e os desejos da vida encontravam respostas mais completas. A auto-suficiência foi dando lugar à auto-sustentabilidade, isto é, à capacidade da comunidade de prover a si mesma ainda que com o recurso ao exterior.

As comunidades nómadas tinham como única delimitação os laços familiares e as fidelidades pessoais entre os seus membros. Mas com a sedentarização, as comunidades passaram a ter no espaço que agora ocupavam em permanência um novo elemento de delimitação, que viria a ser cada vez mais importante. Quando Aristóteles definiu a polis, pensou na comunidade auto-suficiente numa versão já indissociável do local. Hoje, as comunidades tomam o nome dos lugares onde se implantam e o âmbito do seu governo é territorial; para uma pessoa, ser de Alenquer (ou de outra terra) é por si mesmo um traço identitário significativo.

Portanto, à proximidade entre os indivíduos veio somar-se a permanência num espaço comum e próximo. A agricultura foi o mote, mas abriram-se muitas outras possibilidades. Por exemplo, a construção de redutos seguros, edifícios e monumentos; o armazenamento e a troca de bens; o tempo e o estímulo para outras actividades, como a invenção. Uma nova forma de vida, afinal, com uma nova referência para a identidade do colectivo e dos indivíduos: o local.

Hoje, como sabemos, as vantagens desta permanência estão largamente ultrapassadas pelas vantagens da acessibilidade que os transportes e as comunicações possibilitam. E não apenas aos grandes agentes: o mais comum indivíduo reparte o seu quotidiano por várias comunidades, se isso lhe for vantajoso. Em termos matemáticos, dir-se-ia que o raio de proximidade de uma comunidade local cresceu e passou a alcançar outras, cruzando os seus espaços de influência e baralhando a organização tradicional do território.

Ainda que o fenómeno seja em certa medida encoberto pela inércia da estrutura física e do estatuto político-administrativo, pode suspeitar-se que a comunidade local, enquanto padrão da vida, está a ficar obsoleta. Será que o nosso conceito pode ainda aplicar-se a formas de ocupação do território nascidas mais recentemente, a novas relações entre as pessoas e destas com o espaço, ou será que já foram ultrapassados os limites da sua elasticidade?

VIAFrederico Rogeiro
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